Arquiteto Silvio Contart acha que discussões sobre planejamento de Ribeirão são burocráticas e sem paixão.

JOSÉ ANTONIO BONATO

Faltam, nas atuais discussões sobre o Plano Diretor de Ribeirão Preto, ideal, paixão e visão da cidade na qual todos desejam morar. A declaração é de Silvio Trajano Contart, arquiteto formado pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em planejamento urbano pela University of Pennsylvania (EUA).

Sem paixão e sem ideal, acredita Contart, os debates sobre o planejamento urbano de Ribeirão Preto estão se dando de forma burocrática, por mera obrigação legal. E qual seria a alternativa a essa apatia?

"Se as idéias forem apresentadas de forma atrativa e conseguirem estimular a imaginação das pessoas, induzindo-as a sonhar e a buscar coletivamente realizá-las, elas passarão a fazer parte da cultura da população e terão muito mais chance de realmente influir no desenvolvimento da cidade", declara.

Outra crítica de Contart às várias discussões sobre o planejamento de Ribeirão está associada ao número de legislações disciplinando o setor. "A legislação atual é uma colcha de retalhos e uma tarefa urgente seria sua consolidação e simplificação, para diminuir o número de leis sobre um mesmo assunto."

Sobre áreas verdes, o arquiteto afirma que o poder público não tem mais condições de implantar e fazer a manutenção delas. "Já passou da hora de debatermos como vamos dividir a conta ou senão simplesmente não vai acontecer", afirma.

Indagado sobre o que faria para deixar a cidade mais bonita, Contart fala que iniciaria um processo de sedução do cidadão para atingir esse objetivo. A cidade geraria situações concretas de deleite aos cidadãos e estes, diz, sentiriam que ela lhes devolve muito mais do que deles tiram.

Contart, que assina os mais sofisticados projetos de condomínios fechados de Ribeirão, é sócio da Contart & Takano Arquitetos e também membro do Comur (Conselho Municipal de Urbanismo). Ele é o convidado desta semana da Agenda Ribeirão, série de entrevistas da Gazeta que debatem a cidade.

Leia, abaixo, trechos da entrevista, concedida via email.

Gazeta - Numa das audiências do Plano Diretor, na Aeaarp, você falou que sente que falta, em todos esses debates, uma visão de cidade, da cidade que todos queremos construir e morar. Explique melhor.

Silvio Contart - Essas oportunidades são tão raras que me dá sempre a sensação de que poderíamos estar aproveitando melhor a chance se a coisa toda fosse mais estimulante. Tenho certeza que para o pessoal do planejamento da prefeitura, que está envolvido com o tema do Plano Diretor e suas leis complementares há mais de 10 anos, esse meu comentário parece fora de hora, mas eu insisto nesse ponto.

Eu venho acompanhando os debates desde o início e não consigo me livrar da sensação de que estamos fazendo isso por mera obrigação legal, e não na construção de um ideal. Minha expectativa com relação ao tema era de ser estimulado e envolvido em um debate real sobre questões conceituais da organização da cidade. Queria debater um plano. Um grande plano. Um plano que definisse de forma clara e objetiva aonde queremos chegar, quais os resultados esperados e quais os instrumentos que serão usados para isso. Até para poder discordar das metas ou dos instrumentos ou ainda questionar se os objetivos seriam alcançados mais facilmente de outras formas.

Mas a discussão nunca se dá nesse nível e o que se discute é a coisa pronta, no detalhe do artigo de lei, o que torna o debate desestimulante até para mim que ganho a vida com isso, imagino como será chato para quem não está acostumado. Desse jeito a tendência é uma participação desinteressada e inexpressiva.

Não há liderança por parte do Executivo no sentido de entender e utilizar o poder que as idéias têm de envolver a população, esquentar o sangue e trazer a comunidade para o debate e para a participação nas soluções. Se as idéias forem apresentadas de forma atrativa e conseguirem estimular a imaginação das pessoas, induzindo-as a sonhar e a buscar coletivamente realizá-las, elas passarão a fazer parte da cultura da população e terão muito mais chance de realmente influir no desenvolvimento da cidade. Como por exemplo na questão da estrutura urbana. Existe no Plano Diretor e na única lei complementar aprovada (Código do Meio Ambiente) a idéia de criação de parques lineares de fundo de vale ao longo dos córregos que cortam a cidade. Essa é uma idéia poderosa que poderia estruturar todo o plano. Se ficasse claro para todos que a cidade deve ser organizada a partir desse sistema verde que pode envolver muitos elementos importantes além da vegetação, tais como drenagem urbana, combate a enchentes, lazer, esportes, educação, circulação e serviços públicos. Todos esses elementos poderão ser planejados de forma sinérgica onde o investimento feito em cada um valoriza e estimula o outro e a coisa vai tomando forma como um todo. Com uma estrutura como essa as decisões do dia-a-dia da administração pública e mesmo da iniciativa privada passam a obedecer e a incrementar o plano, passa a existir uma razão e uma ordem e as decisões deixam de ser aleatórias ou simples solução de problemas localizados. Criar essa razão a mais para fazer as coisas de um jeito e não de outro, obedecer a uma ordem e uma lógica maior é executar um plano.

Gazeta - Você critica muito a legislação, as várias legislações, melhor dizendo, que devem nortear o parcelamento, o uso e a ocupação do solo. Qual o problema que há com elas?

Contart - De novo é uma questão conceitual, o que me incomoda é a forma de colocar o problema e não a solução dada. Está claro que a legislação atual é uma colcha de retalhos e que uma tarefa urgente seria sua consolidação e simplificação, digamos pelo menos para diminuir o número de leis sobre um mesmo assunto. Temos que considerar que o que existe hoje foi acumulado ao longo de pelo menos 30 anos e que o processo de criação de leis de uso do solo nem sempre seguiu uma lógica geral do bem comum ou da coerência urbanística. Mas isso não é Plano Diretor.

O Plano Diretor de Ribeirão Preto foi aprovado em 1995 e está em vigência já em sua primeira revisão de 2003 que ocorreu conforme previsto no próprio plano (em até 10 anos) e também para incorporar instrumentos urbanísticos criados pelo Estatuto da Cidade. Só que como o próprio plano estabelece, sua aplicação depende de legislação complementar a ser enviada pelo Executivo, como de fato foi no caso do código do meio ambiente Lei 1616/2004.

Da forma como o Plano Diretor foi concebido, falta em seu texto os aspectos objetivos e específicos que são necessários para que ele possa ser usado na prática como diretriz clara, mesmo contando com 152 artigos.

Só que ao detalhar as leis complementares acabamos gerando uma quantidade exagerada de informações que também deixa de cumprir o papel de Plano Diretor, simplesmente pela quantidade aterradora de artigos, mapas e tabelas (a lei do meio ambiente tem 289 artigos, e os projetos de lei do mobiliário urbano 272 artigos, do parcelamento, uso e ocupação do solo 151 artigos, o do plano viário 25 artigos e o código de obras ainda não foi apresentado). É simplesmente impossível atrair atenção e viabilizar um debate envolvente e produtivo com o cidadão comum tendo como tema uma legislação de 889 artigos que praticamente substitui toda a legislação urbanística municipal existente.

Na minha opinião deveríamos aproveitar o momento para fazer uma revisão na lei do Plano Diretor e incorporar a ele as grandes questões conceituais que são realmente importantes, incluindo definições claras, objetivas e específicas, para que cada um ao ler o documento possa entender o que se pretende sem a necessidade de leis complementares. Depois disso podemos partir para o detalhamento da legislação complementar.

Gazeta - Você está otimista ou nem tanto em relação às discussões sobre o Plano Diretor?

Contart - Normalmente me considero um otimista, mas neste caso venho cada vez mais assumindo uma posição resignada de que o que vai acontecer é isso aí mesmo, e que a maioria das pessoas envolvidas já se cansaram do assunto e querem acabar logo com a discussão, incluir seu item na agenda e voltar para casa. Se conseguirmos consolidar a legislação, diminuindo o número de leis, já será um avanço.

Gazeta - Você critica o fato de o poder público exigir áreas verdes e não ter como cuidar delas. Você chegou também a dizer que algumas cidades usam os índices de áreas verde e institucional de forma mais criativa. Por favor, fale sobre isso.

Contart - Como na questão do Plano Diretor é um erro pensar de forma muito simplista. Não basta aumentar os índices de reserva de área verde para resolver o problema. A questão é muito mais ampla e se resume à constatação de que, por uma série de fatores históricos e contingências a sociedade dá cada vez mais valor à idéia de ter o verde dentro da cidade mas não quer ter trabalho nem pagar a conta da manutenção.

Podemos passar o ônus para o empreendedor por um tempo (5 anos pela lei 1.616/2004) mas isso também não resolve o problema em definitivo além do que o custo vem embutido no preço do lote. Temos que refletir de forma mais profunda sobre o tema. Conviver com a natureza e usufruir de todos os benefícios que advém desse convívio dá trabalho e custa caro. Se de forma coletiva decidimos que deverá haver 15 m2 de área verde efetivamente implantada para cada habitante da cidade (como ficou determinado na lei orgânica do município), então já passou da hora de debatermos como vamos dividir a conta ou senão simplesmente não vai acontecer. A criação de novas áreas verdes e de lazer faz parte do processo de novos parcelamentos do solo, mas a cidade não pode depender dos novos empreendimentos para compensar por anos de atraso ambiental. É necessário encontrar maneiras de transformar o amor ao meio ambiente em vontade de pagar a conta. Claro que dentro das possibilidades de cada um e ao longo do tempo, pois a manutenção de áreas verdes é um custo eterno. Acho que um bom caminho é o da identidade da população com a praça, o parque ou mesmo cada árvore, com campanhas criativas de educação ambiental como no exemplo de Curitiba, em que a prefeitura plantava a árvore por encomenda de uma criança, que se tornava responsável pelos cuidados, e 20 anos depois as pessoas viajam de volta para visitar a árvore da infância.