Mesmo sem o fim das obras, construtoras conseguem documento nas prefeituras e podem reajustar parcelas.
Entre os problemas, estão imóveis sem luz, elevadores que não funcionam e áreas com pouco acabamento.
Compradores de imóveis iniciam um novo capítulo na batalha contra as construtoras, dessa vez por problemas envolvendo a concessão do alvará de conclusão de obra, o Habite-se.
O documento cedido pelas prefeituras atesta que o imóvel está regular, tem o auto de vistoria do Corpo de Bombeiros e indica o fim da obra.
Em cinco casos aos quais a reportagem teve acesso, entretanto, compradores dizem que as empresas conseguiram o documento muito antes do término real dos imóveis.
A Folha soube dos problemas envolvendo o Habite-se pelo Folhaleaks, canal criado pelo jornal para receber informações e documentos.
Entre as reclamações estão falta de ligação oficial de luz, elevadores sem funcionar e acabamento pendente.
As queixas são ainda mais numerosas porque as construtoras reajustam as parcelas do imóvel segundo o IGP-M (Índice Geral de Preços de Mercado) depois da obtenção do Habite-se, conforme prevê a maioria dos contratos.
Isso pode dobrar o valor cobrado na construção, quando incide o INCC (Índice Nacional de Custo da Construção).
Problemas estruturais foram registrados por um engenheiro que comprou um imóvel de R$ 1,1 milhão construído pela Cyrela e pela Lucio Engenharia, no Tatuapé, zona leste paulistana.
As imagens foram feitas pelo comprador, que prefere não se identificar, 20 dias depois do Habite-se e mostram fios elétricos aparentes, hidrantes sem mangueiras e áreas incompletas.
Com o Habite-se, porém, as parcelas subiram de
R$ 2.800 para R$ 4.600.
SEM LUZ
Em Guarulhos, o condomínio Parque Imperial, da construtora MVG, recebeu o documento, mas os apartamentos não têm ligação oficial de luz.
Quase um ano após a entrega, 150 dos 208 apartamentos recebem energia em esquema de rodízio a partir de um transformador provisório, segundo a moradora Suellen Mendes, 29.
A concessionária EDP Bandeirante nega problemas e afirma que "atende aos critérios de segurança e qualidade".
"Há uma epidemia de abusos na concessão do Habite-se. As empresas correm para conseguir o documento para se isentar da responsabilidade por atrasos", diz o advogado Marcelo Tapai, especializado em direito imobiliário, que teve 271 ações do gênero abertas só em 2011.
No condomínio Reserva Santa Cecília, da Gafisa, em Volta Redonda (RJ), compradores reclamam que algumas unidades estavam ainda sem água e sem energia elétrica na emissão do Habite-se, além de relatarem obras bloqueando o acesso ao prédio.
Em Santo André, na Grande São Paulo, denúncias do vereador Tiago Nogueira (PT) levaram à abertura de inquérito pelo Ministério Público Estadual para apurar como o documento foi emitido para o condomínio da construtora Irish, sendo que há até partes não construídas do topo de um dos três edifícios.
Após a denúncia, o documento foi anulado.
"Vamos investigar se a responsabilidade foi do funcionário municipal que emitiu o Habite-se, do fiscal do Corpo de Bombeiros ou do engenheiro da construtora", diz o promotor Fábio Franchi.
Outro empreendimento, da incorporadora Trisul, também em Santo André, recebeu Habite-se para os quatro prédios. No entanto, apenas dois estavam de fato em condições de moradia.
Procurado, o Secovi-SP (Sindicato da Habitação) afirmou que o documento só pode ser emitido quando faltam poucos detalhes de acabamento da obra.
Outro Lado
Empresas negam irregularidade em obras.
Segundo construtoras, laudo do Corpo de Bombeiros e outros documentos oficiais justificam o Habite-se.
As cinco construtoras envolvidas nos casos apurados pela Folha negam irregularidades na expedição do Habite-se e dizem que as obras já estavam no fim quando o documento foi emitido.
Sobre o prédio do Tatuapé onde o morador fotografou os problemas, a Lucio Engenharia afirma que há em fase final de acabamento apenas pinturas e retoques.
A empresa também diz que os documentos exigidos para emissão do Habite-se (como auto de vistoria do Corpo de Bombeiros, alvará de instalação e funcionamento dos elevadores, certificados de quitação de impostos municipais), além das ligações definitivas de água e esgoto, estavam em ordem.
A Lucio Engenharia afirma ainda que o contrato prevê a correção das parcelas por IGP-M após a emissão do Habite-se e que a cobrança é "perfeitamente legal".
Já a Gafisa nega que o imóvel de Volta Redonda
-onde o morador verificou falta de água e de luz em unidades e problemas de acesso ao interior da obra- estivesse com a infraestrutura deficiente no momento da expedição do Habite-se.
Afirmou também que mantém o reajuste das parcelas pelo INCC e que a migração para IGP-M só ocorrerá após a assembleia de condomínio, marcada para dezembro.
A Irish Empreendimentos, responsável pelos três prédios denunciados em Santo André, informa que não concorda com a anulação do Habite-se e afirma que os imóveis estão concluídos. A previsão é entregar os prédios até o fim do novembro.
A Trisul, que recebeu o Habite-se para os quatro prédios, também em Santo André, quando apenas dois estavam em condições de moradia, afirma que o erro foi da redação da prefeitura, que grafou "Habite-se Total" em vez de "Habite-se Parcial". Em outubro, o problema foi corrigido, relata a empresa.
Em Guarulhos, para o edifício sem energia elétrica, a MVG declarou que a responsabilidade pela ligação provisória atual é da concessionária, a EDP Bandeirante.
A construtora afirma que a instalação do transformador provisório onerou a MVG em mais de R$ 18 mil, já que a empresa teve de estender os cabos internos até o poste em questão, fora do condomínio.
A EDP Bandeirante não comentou as acusações da MVG e ressaltou regularidade nas ligações.
Outro Lado
Prefeituras divergem sobre vistoria obrigatória de imóvel para Habite-se.
Como as regras para emissão do Habite-se são municipais, cada prefeitura tem sua própria forma de agir para emitir o documento.
Em São Paulo, segundo o decreto 38.058 de 1999, a visita de um fiscal para comprovar as condições de moradia e validar o Habite-se não é obrigatória em razão do grande volume de obras.
A construtora deve apresentar à subprefeitura da região somente os documentos (auto de vistoria do Corpo de Bombeiros, certificado de quitação de ISS, alvará de funcionamento e de instalação de elevadores e laudo do engenheiro da obra).
"Se o imóvel não tem condições de ser ocupado, o responsável técnico da construtora pode ser responsabilizado legalmente", diz José Paulo Marzagão, do escritório Koury Lopes Advogados.
A Subprefeitura de Aricanduva, responsável pela área do prédio da Cyrela e da Lucio Engenharia, afirma que os documentos foram checados e estavam corretos.
"A prefeitura transferiu a responsabilidade da veracidade sobre a conclusão da obra às construtoras", diz Carlos Eduardo Baumann, do escritório Silveiro Advogados.
O professor Leonardo Godoy, da faculdade Direito GV, aponta que uma alternativa é a contratação de empresas terceirizadas para a vistoria, assim como acontece com a inspeção veicular paulistana.
O secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano de Santo André, Frederico Muraro Filho, afirmou que a visita de fiscais da prefeitura para a expedição do Habite-se está prevista em lei.
Também foi aberta sindicância para apurar de quem foi a responsabilidade pela emissão do documento irregular à construtora Irish.
Em Guarulhos, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano informou que a vistoria é obrigatória. O órgão afirmou que, no condomínio da MVG, técnicos comprovaram a ligação de luz e elevadores.
Procurada, a Secretaria de Habitação de Volta Redonda, responsável por liberar o documento à Gafisa, não respondeu aos pedidos de entrevista.
Análise
Consumidor deve agir como 'fiscal' da construção do imóvel.
Comprador precisa se informar sobre a empresa, exigir documentos, recusar taxas abusivas e acompanhar obra.
Com o boom imobiliário, o que era sonho está se tornando pesadelo. O consumidor tem que conviver com o atraso na entrega das chaves em razão de problemas com a documentação do imóvel, com autorizações públicas para a conclusão da obra e a liberação do empreendimento, frustrações com o tamanho do imóvel ou defeitos constatados no ato da entrega.
Assim, cuidados básicos são essenciais. O consumidor deve pesquisar a empresa responsável pelo empreendimento, observando a regularidade da construção e da entrega de outros imóveis, reclamações existentes no Procon ou em sites de queixas na web e, se conhecer alguém que já comprou da construtora, procurar saber se a pessoa enfrentou problemas.
O consumidor também tem direito de receber a documentação que consta em cartório (registro imobiliário) e o memorial descritivo, importante documento para saber qual material será utilizado na construção. O cliente também poderá consultar a regularidade da obra na prefeitura.
É preciso ler o contrato com atenção: nele devem constar valor do bem, forma de pagamento detalhada (com parcelas fixas e intermediárias e reajustes), taxas nominal e efetiva de juros em caso de financiamento, data de entrega, eventual prazo de tolerância (no máximo, seis meses) e qual a multa por descumprimento de prazo.
É necessária atenção a taxas consideradas abusivas: taxas de transferência do bem, de entrega de chaves, de concessão de financiamento e de consultoria jurídica. Elas não devem ser cobradas; exija a retirada de cláusula nesse sentido.
Por fim, é importante ter um cronograma da obra: previsões para a edificação da obra, obtenção do Habite-se e outras autorizações.
Os cuidados não acabam com a assinatura: o consumidor precisa acompanhar a construção.
No caso de atraso, mesmo não havendo previsão de multa no contrato, segundo o Código de Defesa do Consumidor, deve haver indenização ampla e irrestrita dos seus prejuízos. Assim, é possível cobrar judicialmente todas as despesas suportadas pelo consumidor após o prazo final de entrega das chaves (aluguel, entrega de bens, eventuais impostos e taxas), bem como obter indenização por eventuais danos morais.
Folha S. Paulo - 20/11/11